MUSEU CAIS DO SERTÃO – RECIFE PE – BRASIL ARQUITETURA
- Analu Cadore
- 7 de nov. de 2019
- 10 min de leitura
Atualizado: 31 de out. de 2023
Por Analu Cadore

Desde que foi inaugurado em 2014 e quando começaram a pipocar nas redes sociais e na literatura especializada matérias sobre este projeto, ele entrou definitivamente no topo da minha lista de edifícios a conhecer. Aliado ao fato de que adoro a cidade Recife e sempre arrumo uma “desculpa” para voltar.
No post anterior fiz uma análise técnica da minha visita e das impressões sobre a Oficina Francisco Brennand, também em Recife, porém neste texto farei uma abordagem diferenciada.
Existe uma polêmica muito grande envolvendo este projeto, no que tange à intervenção realizada em um sítio de imóveis tombados pelo Patrimônio Histórico. Quando participei de um Seminário(1) em que se encontravam os dois “lados” – um dos autores do projeto e uma pessoa bastante envolvida com a cidade do Recife e as questões de preservação histórica – pude conhecer o dilema que intensificou minha vontade de experimentar in loco e tirar minhas próprias conclusões.
Para elaborar melhor um contexto do assunto e deixar clara a trama toda, irei apresentar nas linhas seguintes as justificativas, pontos de vista e conceitos dos dois lados, com ênfase em frases e palavras destacadas por mim. A fonte destes materiais está nas referências ao final do texto. Estes dados são importantes para fomentar as minhas considerações que têm como base as argumentações antagônicas e as minhas percepções do local.
Inclusive tudo isto é de extrema importância para que você também tire suas conclusões e divida sua opinião nos comentários deste blog. E mais: que fique com vontade de conhecer e entender melhor a dinâmica.
Pois bem, vamos começar.
O MUSEU CAIS DO SERTÃO

Para melhor apresentar o projeto, segue alguns trechos da descrição da equipe técnica, com destaques meus, que descreve todas as características do projeto – do conceito à proposta - publicada no Archdaily(2), :
“Para a construção do museu, o Governo do Estado de Pernambuco destinou um dos armazéns do antigo Porto do Recife e também uma grande área livre contígua a este armazém. Este conjunto, situado à beira do mar na ilha onde nasceu a cidade do Recife - junto ao Marco Zero – está inserido na envoltória de edificações e espaços tombados como patrimônio histórico nacional.
Em consonância com a proposta urbanística do Estado e do Município de manter os antigos galpões do porto dando-lhes novas funções, o projeto arquitetônico foi desenvolvido com o aproveitamento de um deles (2.500m2) e com a criação de um novo edifício (5.000m2) conectado ao galpão, reforçando a estrutura longilínea de construções do porto, para abrigar todo o programa do museu.
Pela importância de sua localização e de seu programa sociocultural, o conjunto do museu - com suas áreas livres e de convívio - cria um novo marco urbano na paisagem do Recife. Deve ainda funcionar como agente de requalificação urbanística de todo o centro histórico, reforçando os laços da cidade com suas águas – canais, rios e mar. (...)
Além de prestar um justo tributo a um dos maiores ícones da cultura brasileira – Luiz Gonzaga -, este projeto apresenta o universo do sertão em suas múltiplas vertentes formadoras de um modo de ser brasileiro. A fusão entre arquitetura e museografia criam uma unidade a partir do tema: Sertão. O concreto pigmentado amarelo ocre representa a cor quente do solo do agreste. Com uma estrutura sofisticada de concreto protendido, projetamos um grande vão de aproximadamente 65 metros de luz, criando uma grande praça coberta, uma verdadeira varanda urbana - abrigo do forte sol e das chuvas da cidade. Essa praça coberta poderá ter uma infinidade de usos, das festas abertas às feiras, dos shows ao nada fazer no desfrute de uma boa sombra ou vista para os arrecifes.

Mas o mais simbólico elemento da arquitetura é o cobogó gigante, criado especialmente para o projeto. Nada mais justo do que o uso do cobogó nas construções do Recife, cidade onde ele nasceu, pelas suas características de amenizar a relação dos espaços interior/exterior, criando um filtro de luz para os de dentro que miram a paisagem por entre “galhos”, e uma “doce e amaciada” visão para os de fora, os transeuntes que cobiçam o dentro. Nosso cobogó executado em concreto geopolimérico deverá funcionar como uma grande renda branca bem alva sobre o concreto estrutural amarelo, lembrando a galhada da caatinga, ou as rachaduras de solo seco. Este forte elemento é a logomarca do Cais do Sertão.

Aberto ao público mais diverso e às escolas, o museu tem sido um sucesso por sua proposta arquitetônica e museográfica de conjugar alta tecnologia construtiva e expositiva, objetos variados pesquisados com rigor antropológico, obras de arte em diferentes suportes especialmente criadas para o museu, documentos, filmes e fotografias. (...)
Para resumir em poucas palavras o que é o Cais do Sertão, podemos dizer que é o encontro da técnica com a poética, do hi-tech com o low-tech, do rigoroso e rico conteúdo com a possibilidade da livre interpretação e desfrute; enfim, lugar para o “gozo estético”, onde emoção, surpresa e descoberta caminham lado a lado. Um lugar de gentileza urbana.”

A POLÊMICA
Segundo o texto publicado no portal Vitruvius (3) das arquitetas Maria de Betânia Brendle (4) e Natália Miranda Vieira (5) intitulado “Cais do Sertão Luiz Gonzaga no Porto Novo do Recife: Destruição travestida em ação de conservação” a tentativa de requalificação urbana e resgate cultural, pretendida pelo projeto, fere irremediavelmente um dos principais pontos históricos da cidade.
No referido texto as autoras deixam clara sua interpretação, profundamente baseadas em teorias do restauro e preservação, bem como da legislação incidente:
“De uma maneira geral, o patrimônio industrial, encontra-se em áreas deterioradas e/ou abandonadas (periféricas ou centrais), e sob constantes ameaças de destruição decorrente da especulação e valorização imobiliária. Na tentativa de atrair investimentos de capital público ou privado essas áreas são objetos de projetos de revitalização onde nem sempre são tratadas devidamente e submetidas à intervenções invasivas e mutiladoras que danificam e comprometem profundamente a sua integridade arquitetônica. Assim são também as áreas portuárias de cidades brasileiras, onde, em muitos casos, os edifícios já abandonados ou subutilizados sofrem demolições indiscriminadas à guisa de propostas panfletárias de renovação urbana. (...)

A destruição do Armazém 10, edifício integrante de um conjunto de edificações do Porto do Recife na Avenida Alfredo Lisboa, foi deflagrada a partir da Operação Urbana denominada Porto Novo, para a construção de um museu e centro cultural, o Cais do Sertão Luiz Gonzaga, um memorial ao artista pernambucano. Autorizada pelo IPHAN, a demolição deste testemunho da arquitetura portuária do Recife é um dos mais recentes crimes contra o patrimônio industrial brasileiro. Localizado no entorno da área tombada pelo IPHAN para o Bairro do Recife inserida na ZEPH 9 (setor de intervenção controlada da Lei Urbanística Municipal), o Armazém 10 integrava um conjunto urbano definidor do corredor formado pela Avenida Alfredo Lisboa, de significativo valor ambiental, onde as unidades individuais não possuindo necessariamente qualidade figurativa excepcional, são testemunhos de valor documental, memorial e simbólico da arquitetura portuária resultante da reforma do Bairro no início do século XX. Os antigos armazéns do Porto do Recife representam não uma expressão arquitetônica isolada, mas uma composição espacial de um conjunto ambiental que absorvendo as atividades e práticas sócio-culturais conferiram a identidade portuária ao Bairro do Recife, portal marítimo da cidade do Recife. (...)

A teoria moderna de conservação descarta a demolição arbitrária de edificações com potencial de restauração, como o caso da destruição programada do Armazém 10 para a inserção de novas estruturas arquitetônicas. Edifício-evento na definição de Monnier (6) e de qualidades comprometedoras e descaracterizadoras do conjunto portuário por perpetrar uma verdadeira fratura na apreciação do sítio histórico como um todo, a construção do Cais do Sertão Luiz Gonzaga é uma intervenção que desconsidera aspectos básicos da conservação do conjunto patrimonial. Como argumenta Kühl (7) “não se justifica a alteração de um conjunto de qualidade para fazer arquitetura, ainda que boa arquitetura”.
A condição da arquitetura contemporânea para “construir no construído” é necessária, mas não suficiente. O projeto do Cais do Sertão Luiz Gonzaga, apesar de ser uma expressão arquitetônica atual não considera valores definidores da silhueta urbana e do ambiente construído pré-existente e altera profundamente suas relações de volumetria, escala e morfologia urbana.

Ele reforça a lacuna sobre a lacuna resultante da demolição do Armazém 10, pois acentua a interrupção do tecido figurativo da estrutura urbana do conjunto definidor da área portuária, estabelecendo tensões espaciais provocadas pela manipulação das dimensões da calha da Avenida Alfredo Lisboa, e pelo confronto com a Torre Malakoff, retirando-lhe a supremacia de sua escala original e alterando aleatoriamente os componentes e qualidade de sua composição urbana. Apesar de garantida a autenticidade da arquitetura contemporânea, o resultado é o claro comprometimento da integridade do conjunto. (...)”

A PERCEPÇÃO DO CONTEXTO ATRAVÉS DO CONHECIMENTO DO LOCAL
Com o conhecimento do exposto acima, fiz questão de conhecer o local, para tirar minhas próprias conclusões e avaliar a situação.
Após a visita acabei entendendo os dois pontos de vista, e que ambos, até certo ponto, estão com a razão. E eu cheguei a uma terceira conclusão (se é que isso é possível).
Entrando na rua que parte do Marco Zero e chega à entrada do Museu, aproveitei o caminho até a entrada para avaliar a relação com a Torre Malakoff, que eu havia visitado anteriormente à obra do Museu, em 2011. Infelizmente, o volume do novo edifício realmente cobre completamente a vista da Torre e modifica sua escala e relação com o entorno, como afirmam as arquitetas. A torre simplesmente desapareceu no contexto (agravado o fato de que a vegetação circundante precisa de poda pois cobre toda a fachada e prejudica a leitura do edifício).

Rapidamente identifiquei a entrada, que é bem marcada por uma cobertura de laje em concreto pigmentado com um recorte circular projetado para abrigar a copa de uma árvore típica da caatinga, o juazeiro.

O museu em si é muito organizado, funcionários simpáticos, e você deve guardar seus pertences já na entrada. Pode fotografar à vontade. Na entrada encontra-se uma vitrine com a exposição de indumentária característica do sertanejo, antecipando o que te espera adiante.
O projeto museológico é realmente incrível, e de uma sensibilidade ímpar. O visitante é conduzido, para iniciar o passeio, a uma sala de projeção onde será apresentado um curta metragem(9) contando o dia a dia no sertão. Não existem atores, existem pessoas retratando a vida real. O roteiro é de extrema delicadeza, onde é impossível não se emocionar. A fotografia é belíssima, bem como a sincronia das imagens formando o frame completo, projetadas em paredes curvas.
Da sala de projeção o visitante sai diretamente para o espaço do acervo fixo do Museu, onde temos réplicas de casas de pau-a-pique e alguns itens de casa, comum ao sertanejo, indicando seus hábitos e seu dia a dia. No restante do espaço, no térreo, elementos e obras artísticas características do sertão (pau de sebo, achei um barato). Permeando e conectando os diferentes elementos, um “rio” corta todo o espaço, serpenteando entre as obras expostas. No pavimento superior, exposição sobre a vida e obra de Luiz Gonzaga, salas de música onde você pode fazer um karaokê das músicas dele e uma sala com diversos instrumentos musicais pertinentes ao estilo musical, para que você possa tocar – ou só fazer barulho mesmo – à vontade.
O espaço apresenta uma característica brutalista: estruturas, encanamentos e suportes à mostra, no melhor estilo barracão/ armazém.
Por fim, qual a minha opinião, depois de conhecer o espaço?
O projeto, analisado isoladamente, é sensacional. Merecedor de todos os prêmios que têm recebido. Uma sensibilidade no projetar, no pensar o espaço, sua conexão com o tema, relação espaço expositivo e obras, isso sem comentar a composição volumétrica do prédio. O cobogó dá um efeito incrível, contrasta com o concreto pigmentado e aquele céu azul como pano de fundo.
O vão tem uma proposta agregadora, nos mesmos moldes do vão do MASP em São Paulo, as pessoas realmente se apropriam do local. Aos domingos – que foi o dia em que visitei – as ruas do centro são fechadas à passagem de veículos para que as pessoas possam transitar livremente e aproveitar as áreas públicas. Através do vão e da permeabilidade visual do cobogó, o edifício se volta ao entorno, tentando uma inserção mais interativa com o local.
Mas, em se tratando da inserção no contexto, em termos de requalificação do espaço urbano... falhou miseravelmente. Me desculpem os defensores da intervenção mais proeminente mas não houve conversa alguma com o local. Cobriu completamente a vista da Torre Malakoff, não deu continuidade alguma com o complexo dos armazéns. A impressão que dá é que foi meio que “largado” ali aquele edifício, que não tem impacto no entorno. "Quebrou" a leitura do conjunto e hoje em dia possui um destaque muito maior do que o contexto histórico circundante. Nesse sentido, tanto os valores de paisagem como de contexto, foram sacrificados.
Isto de maneira alguma desabona o projeto... mas como intervenção em centro histórico e requalificação do espaço, não foi muito feliz.
Em suma, esta é a MINHA OPINIÃO. Sempre reforço que temos que conhecer os locais, expandir vivências, e tem coisas que só a análise como usuário pode lhe proporcionar.
Por sim, os dois argumentos procedem. Eis uma polêmica sem fim...
REFERÊNCIAS
1 - Seminário Cidade & Patrimônio – Centro Histórico de Curitiba PR – 05 a 08 de junho de 2018
4 - Maria de Betânia Uchôa Cavalcanti Brendle é PhD em Desenho Urbano pelo Joint Centre for Urban Design, Oxford Brookes University (1994), com especialização em Restauração de Monumentos Históricos e Revitalização de Centros Históricos pelo PNUD-Unesco/Peru (1980) e em Architectural Conservation pelo ICCROM-Roma (1987) e graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pernambuco (1976). Tem experiência docente em Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo, História Urbana, Intervenções Urbanísticas, Técnicas Retrospectivas, Intervenções em Sítios Históricos e Preservação do Patrimônio Cultural. E ainda, prática projetual nas áreas de Educação Patrimonial, Intervenções Urbanas (revitalização, conservação e restauro urbano), Preservação Ambiental, Conservação Integrada, Renovação Urbana e Nova Arquitetura em Áreas Antigas. Atualmente é Professora Adjunta do Núcleo de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia da Universidade Federal de Sergipe, Coordenadora do INRC-Laranjeiras (Inventário Nacional de Referências Culturais) e Representante da Universidade Federal de Sergipe no Conselho Municipal de Cultura de Laranjeiras. É membro do ICOMOS/BRASIL, Conselho Internacional de Monumentos e Sítios. (Fonte: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.150/4460 acessado em 11/07/19)
5 - Natália Miranda Vieira é Doutora em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco (2006) na área de concentração de Conservação Integrada, Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (2000) e graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pernambuco (1995). Desde 2009, Professora Adjunta do Departamento de Arquitetura e do Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFRN da área de Projeto de Arquitetura. Experiência docente em diversas IES privadas, sempre na graduação em Arquitetura e Urbanismo, desde 2001. Sócia-fundadora e, atualmente, membro do Conselho Científico do Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada (CECI). Área de atuação principal: na graduação - projeto de arquitetura; na pós-graduação: projeto de intervenções em áreas patrimoniais e gestão de sítios históricos. (Fonte: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.150/4460 acessado em 11/07/19)
6 - MONNIER, Gerard. "O edifício-evento, a história contemporânea e a questão do patrimônio". In: Desígnio. Revista de História da Arquitetura e Urbanismo, n.6, p.11-18. São Paulo: Anna Blume Editora⁄ FAU-USP, 2006. (Fonte: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.150/4460 acessado em 11/07/19)
7 - KÜHL, Beatriz Mugayar. "Restauração hoje: método, projeto e criatividade". In: Desígnio. Revista de História da Arquitetura e Urbanismo, n.6, 19-34. São Paulo: Anna Blume Editora⁄ FAU-USP, 2006. (Fonte: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.150/4460 acessado em 11/07/19)
8 - PROJETO DE URBANIZAÇÃO DO CAIS DO PORTO. Apresentação pública realizada pelo Governo do Estado de Pernambuco em Janeiro de 2011. Recife/PE, 2011. (Fonte: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.150/4460 acessado em 11/07/19)
9 – Produção do cineasta Marcelo Gomes intitulado “Um dia no sertão” filmado na Serra Talhada.