AS CARTAS PATRIMONIAIS E SUA CONTRIBUIÇÃO NOS PROCESSOS DE RECUPERAÇÃO E CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL URBANO: O CASO DA RUA BARÃO DO RIO BRANCO EM CURITIBA PR (Parte 1)
- Analu Cadore
- 18 de dez. de 2024
- 11 min de leitura
Atualizado: 19 de dez. de 2024

As famosas Cartas Patrimoniais são documentos elaborados em convenções e congressos, por um grupo de profissionais envolvidos nestes eventos e que visam estabelecer algumas regras ou códigos de boas práticas no campo da preservação e conservação do patrimônio cultural mundial. Ao longo da história temos registro de várias Cartas e Documentos, que auxiliaram a delinear o campo da preservação até os dias atuais.

Estes documentos continuam a ser redigidos, sempre de acordo com as necessidades conforme estas se apresentam, e funcionam como uma regra de boa conduta em estudos, planos e projetos no âmbito do Patrimônio Cultural.
São geralmente textos curtos e objetivos, porém com uma carga conceitual enorme, pois as equipes que os redigem são compostas de uma variedade de profissionais de diferentes campos do saber, por isso são bastante completas e abrangentes.
Mas a grande questão é... COMO EU APLICO ISSO NA PRÁTICA?
Foi esse o meu intuito quando escrevi o artigo para o Arquimemória 6 - Encontro internacional sobre a Conservação do Patrimônio Edificado que aconteceu em Novembro de 2024 em Salvador, Bahia.

Já é a minha 3a participação no Arquimemória (participei em 2012 e 2017), só que este ano não presencialmente. O que foi uma pena, porque o evento é ótimo e de extrema importância para a discussão nas áreas de arquitetura, restauro, conservação e preservação do Patrimônio Histórico...
Aproveitei um trabalho que estou elaborando para uma disciplina aqui na SSIBAP IUAV e elaborei este material, o qual você pode conferir alguns trechos a seguir... para o texto completo e a respectiva bibliografia acesse o artigo completo em https://www.even3.com.br/anais/arquimemoria6/936561-as-cartas-patrimoniais-e-sua-contribuicao-nos-processos-de-recuperacao-e-conservacao-do-patrimonio-cultural-urban/
Este trabalho foi publicado no eixo especial que comemora os 60 anos da Carta de Veneza e os 30 anos do Documento da Conferência de Nara.
Segue então um recorte do trabalho, dividido em 2 partes para não ficar tão pesada a leitura, já que eu fui bastante técnica e trabalhei os texto item a item. Isso é importante para ajudar no entendimento de como aplicar um texto do gênero com uma proposta prática. Por ser um recorte, não estão publicados aqui todos os itens, por isso recomendo - para quem quer aprofundar o tema - a clicar no link acima e conferir o artigo completo.
AS CARTAS PATRIMONIAIS E SUA CONTRIBUIÇÃO NOS PROCESSOS DE RECUPERAÇÃO E CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL URBANO: O CASO DA RUA BARÃO DO RIO BRANCO EM CURITIBA PR
Os processos para a salvaguarda de áreas urbanas históricas devem buscar respaldo nos Documentos Internacionais de preservação, cujas linhas norteiam as ações envolvidas para que estas não caiam no lugar comum do ripristino, que muitas vezes resultam em centros sem vida, animados somente pelos famigerados processos de gentrificação e turismo depredador.
A cidade de Curitiba, capital do Paraná, possui 331 anos de história e um variado patrimônio histórico, concentrado majoritariamente em sua região central. Patrimônio este, em boa parte, produto da diversidade cultural que o Brasil recebeu no século XIX através das grandes levas de imigrantes europeus que estruturaram a cidade. Atualmente seu centro apresenta-se bastante compactado e com grande numero de imóveis históricos abandonados ou subutilizados, o que contribui para o degrado urbano.
A Rua Barão do Rio Branco é uma das mais antigas vias do centro da cidade, criada em 1882[1] como ligação do então centro urbano com a recém-construída Estação Ferroviária. Nela instalaram-se os principais órgãos administrativos do Município e do Estado, sendo assim chamada de “Rua do Poder”. Por muitos anos desempenhou papel de centro político e econômico até que em 1946 o Primeiro Plano Urbanístico[2] deslocou as funções administrativas da Rua Barão para o recém-construído Centro Cívico, dando início ao seu processo de abandono.
[1] O engenheiro italiano Antônio Ferrucci (Macerata, 1829 / Roma, 1906 - Formado na Universidade de Pisa, trabalhou na construção da ferrovia Bolonha-Ancona, no Egito, na construção do Canal de Suez e da Ferrovia Port Said-Suez) fez parte da equipe que construiu a Ferrovia Curitiba-Paranaguá e em 1882 escolheu o local para a implantação da Estação Ferroviária de Curitiba na extensão da então Travessa Leitner que partia da então Praça do Mercado (atual Praça Generoso Marques) e chegando até a estação. Este eixo serviu para que em 1888 outro engenheiro italiano, Ernesto Guaita elaborasse o primeiro plano de expansão da cidade, em tabuleiro de xadrez, conhecido como Plano Nova Coritiba (1888).
[2] O Primeiro Plano Urbanístico de Curitiba foi elaborado em 1946 pelo urbanista francês Alfred Agache que previu um desenvolvimento descentralizado e radial da cidade, juntamente com o deslocamento de algumas funções administrativas do centro da cidade para o novo Centro Cívico.

AS CARTAS PATRIMONIAIS E OS DOCUMENTOS DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL
As cartas patrimoniais são documentos elaborados com o objetivo de nortear os métodos e procedimentos a serem adotados na preservação do patrimônio cultural. São documentos de caráter instrutivo e não regulatório e representam um recorte temporal das discussões sobre as formas de pensar e proceder de um determinado momento. Não possuem entre si uma homogeneidade de conceitos, mas sim trazem especificidades e até divergências entre si.
A Carta de Veneza e o documento da Conferência de Nara diferem em sua natureza, sendo o segundo considerado como Carta, mas não é. O texto da Conferência de Nara procura reafirmar os conceitos da Carta de Veneza e traz a discussão sobre autenticidade, sendo complementar ao texto anterior. Juntamente com os demais documentos internacionais de preservação, formam um conjunto indispensável de informação e reflexão para a atuação na preservação do patrimônio cultural.
A RUA BARÃO DO RIO BRANCO
Porta de entrada do visitante que chegava a Curitiba no final do século XIX, a Rua Barão do Rio Branco tem sua história profundamente conectada com a história da cidade. Curitiba surge como um ponto de encontro de tropeiros e mercadorias que circulavam do Rio Grande do Sul e São Paulo e conectavam com o litoral, no Porto de Paranaguá.
Com a elevação à Capital de Província (1853) e o aumento do fluxo de mercadorias, fez-se necessária uma ligação mais eficiente com o litoral, e em 1882 dá-se início às obras da Estrada de Ferro que ligava Curitiba ao porto de Paranaguá. Neste ano o Engenheiro italiano Antônio Ferrucci estabelece o local para a Estação Ferroviária de Curitiba, a 800 metros do fim da Travessa Leitner, atual Rua XV de Novembro. O eixo que conectava a recém-construída Estação e o centro da cidade, na Praça do Mercado (atual Praça Generoso Marques) ficou conhecida como Rua da Liberdade e mais tarde, Rua Barão do Rio Branco.

Mais tarde, em 1888 o engenheiro italiano Ernesto Guaita realiza o primeiro plano de expansão urbana da cidade, conhecido como Plano Nova Coritiba, onde utilizou a Rua Barão do Rio Branco como eixo para traçar a malha urbana da cidade no modelo tabuleiro de xadrez, permanecendo este tecido urbano até os dias atuais.

Em 1946 o urbanista francês Alfred Agache elabora o Primeiro Plano Urbanistico de Curitiba onde as funções administrativas da cidade foram transferidas e concentradas no Centro Cívico, nos melhores moldes do urbanismo modernista, o que posteriormente passou a ser um traço marcante da cidade. Com isto, iniciou-se o declínio da Rua Barão do Rio Branco bem como de toda a região central, uma vez que a proposta do novo urbanismo era de descentralizar a cidade.
Por muitos anos a Rua Barão foi local dos principais acontecimentos da cidade. Foi a rua dos primeiros bondes de tração animal, depois bondes elétricos até os ônibus expresso. Era palco de manifestações públicas (tanto diante da Sede do Governo, como da Câmara Municipal e na Praça Eufrásio Correia, onde também aconteciam festas e eventos sociais). Em 1916 é inaugurado o Paço da Liberdade, nova sede da Prefeitura Municipal construída pelo engenheiro Cândido de Abreu no local onde antes era o Mercado público (na Praça Generoso Marques). Assim, a Rua Barão consistia em um eixo onde concentravam-se todos os poderes políticos e administrativos da cidade sendo chamada de “rua do poder”.



O cenário atual é produto deste paulatino abandono, somado às dinâmicas socioeconômicas características de uma capital do porte de Curitiba e a falta de instrumentos legais adequados de preservação, vão transformando a paisagem do que antes era a rua do poder em um cenário perdido no tempo. Edifícios históricos abandonados, subutilizados, descaracterizados e sem manutenção, somados à construções de baixa qualidade e espaço urbano pouco convidativo escassa compõem a paisagem da Rua Barão do Rio Branco.
A CARTA DE VENEZA E A RECUPERAÇÃO DA RUA BARÃO DO RIO BRANCO
A Carta de Veneza para o restauro e a conservação de monumentos e sítios foi escrita em 1964 como produto dos debates do II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos e tem por objetivo estabelecer normas e referenciais para os projetos de intervenção de conservação e restauro de monumentos e artefatos arquitetônicos, sítios históricos e arqueológicos.
“Imbuídos com a mensagem do passado [...]” a frase que abre o texto da carta invoca o dever de todos como responsáveis pela transmissão da cultura e saberes que cada artefato histórico porta. A noção de coletividade e comunidade é sempre lembrada, ressaltando o caráter democrático do acesso à cultura. A participação popular é de extrema importância não só na tomada de decisões, mas também em compreender a história local e sua relevância, permitindo com que a conservação aconteça de forma ampla e participativa.
Definição
Artigo 1º. A definição de monumento refere-se não somente aos artefatos arquitetônicos isolados, mas também áreas urbanas e rurais, possuidores de significado cultural ou representatividade para população à qual estão ligados. Esta noção conversa diretamente com o caso estudado, uma vez que a intenção é preservar todo o conjunto da Rua em todos os seus elementos, compreendendo sua importância para a preservação das demais áreas históricas da cidade.
A Rua Barão do Rio Branco foi uma das primeiras a receber a circulação de Bondes elétricos, existindo ainda hoje alguns trilhos remanescentes na vizinhança da Antiga Garagem de Bondes, em frente da Praça Eufrásio Correia. Resgatar esses elementos traz à luz uma história desconhecida pelas gerações mais jovens e é um interessante elemento de valorização, já que se relaciona diretamente com um processo de modernização da cidade e com o transporte público, elemento que estrutura o planejamento urbano de Curitiba.

No Artigo 2º. a carta refere-se à multidisciplinaridade das ações de conservação e restauração, e de como os diferentes saberes podem contribuir com o estudo e a salvaguarda do patrimônio arquitetônico. Este é um fator preponderante em um estudo de recuperação de uma rua histórica, pois sendo um espaço urbano, abrange diversas dinâmicas que vão além do elemento arquitetônico isolado. Vai da materialidade até a imaterialidade.
Conservação
Sobre conservação, a Carta traz a importância da manutenção do monumento (Artigo 4º.), evitando ao máximo a intervenção de restauro. Aqui entra a participação do poder público e órgãos de tutela na elaboração de legislação específica para viabilizar e fiscalizar intervenções e reuso dos edifícios históricos.
No Artigo 5º. é tratada a questão do Uso. É preciso salientar que, em se mantendo a atividade dos imóveis e espaços públicos dos centros históricos, mantém-se também a vida destes locais. Fomentando o uso, a circulação de pessoas e consequente manutenção dos edifícios e espaços públicos, cria-se a apropriação pela população. Este é mais um dos elementos que conversa diretamente com o estudo para a recuperação da Rua Barão do Rio Branco, pois reverbera a própria história do local.
No artigo intitulado Notas sobre a Carta de Veneza, a professora Beatriz Mugayar Kühl aborda de forma muito clara e objetiva ao papel do uso em uma intervenção de conservação e restauro. A reflexão sobre o uso ser algo desejável, mas não o objetivo final da intervenção é de grande relevância para o projeto estudado. O objetivo é recuperar os edifícios e o espaço urbano da Rua não para que seja utilizado, mas sim por questões de preservação. O uso é a consequência da recuperação – tanto arquitetônica quanto urbana – uma vez que, quando o uso guia a intervenção, a probabilidade de alterações e descaracterizações do bem, para adequar-se ao uso é muito maior – item que será abordado mais adiante. Ter o uso como finalidade é um dos motivos pelos quais muitos projetos de restauro e requalificação não são bem sucedidos.
Artigo 6º. A conservação implica na manutenção da escala e cor do contexto. Não só o edifício ou monumento deve ser conservado em sua escala e proporções, mas também o contexto imediato. Neste artigo a Carta fala sobre a relação do monumento e seu entorno, o que, no casso do estudo proposto, é de fundamental importância em se tratando de um conjunto urbano. Aqui se faz necessária a compreensão de que o elemento arquitetônico ou monumento não funciona sozinho, e sim faz parte de um contexto mais amplo, direta ou indiretamente. E as relações entre elementos arquitetônicos, naturais, construídos ou não construídos compõem a paisagem urbana que é parte da memória das pessoas e da história da qual é testemunho.
Restauração
Os edifícios e elementos urbanos da Rua Barão do Rio Branco funcionam como um ábaco da arquitetura em Curitiba, uma vez que contam o decorrer da história da cidade. Ali são encontrados diversos estilos, materiais e técnicas construtivas, muitas vezes escondidos atrás do abandono, de intervenções irregulares e alterações realizadas ao longo dos anos em busca de viabilizar algum tipo de sobrevida destes imóveis. A ação de restauro descuidada com os enunciados postos nesse artigo 9º põe em xeque não só os valores de autenticidade, histórico e material dos monumentos, mas compromete sobremaneira o valor do conjunto enquanto testemunho histórico e, principalmente, a paisagem urbana.
Artigo 11º. No caso de existirem várias intervenções de variadas épocas em um único monumento, a decisão de remoção de alguma dessas intervenções deve ser justificada e avaliada de acordo com o valor histórico e material da intervenção a ser anulada ou trazida à luz. Essa decisão jamais deve ser feita por uma pessoa só e sim por uma equipe multidisciplinar. As contribuições de variadas épocas devem ser respeitadas, já que demonstram a passagem no tempo do monumento.
Neste caso, temos um ponto delicado quando analisamos o estudo em questão. Muitos dos edifícios históricos da Rua Barão do Rio Branco – bem como seus elementos urbanos – apresentam alterações irregulares, na estética e na composição, que foram executadas com fins de adequar o edifício aos variados usos que estes tiveram ao longo dos anos. A questão é que estas intervenções foram realizadas por pessoas não especializadas na conservação de edifícios históricos e objetivavam somente o uso, e não a preservação. Assim, é comum encontrar aberturas de portas, janelas, dutos de ventilação e coisas do gênero, onde a unidade estética da obra foi comprometida e, consequentemente, a leitura do conjunto.

Sítios históricos
Artigo 14º. Fala sobre a questão do o sítio onde está inserido o monumento, o seu contexto imediato, seve ser objeto de atenção especial no processo de garantia de preservação de sua integridade. Comenta ainda que estes devem ser mantidos limpos e apresentados de maneira adequada. Neste aspecto, é importante uma reflexão sobre o estado atual da Rua Barão do Rio Branco. A falta de manutenção dos elementos públicos como as calçadas, postes e vegetação é um fator crítico no processo de requalificação do espaço urbano.
As calçadas em petit pavet (ou pedra portuguesa) são uma “pedra no sapato” da administração pública pois são de manutenção complicada e causam muitos acidentes em dias de chuva, já que o material é altamente escorregadio, associado ao fato de que estão extremamente desniveladas (foto). Estes fatores são complicadores para a caminhabilidade[3] e fruição da rua pelos passantes. Juntamente a isto, a vegetação existente muitas vezes cobre a fachada dos edifícios, impossibilitando sua leitura e até ofuscando a iluminação pública, uma vez que os postes estão muito perto das árvores e a sua copa prejudica a iluminação da rua.
[3] O termo vêm do inglês Walkability, que remete à capacidade de um espaço urbano ser percorrido a pé.

Publicações
Artigo 16º recomenda que os trabalhos de preservação, restauração e escavação devem ser acompanhados por documentação precisa de forma critica e analítica, ilustrada com desenhos e fotografias, ressaltando a importância dos acervos públicos com livre acesso. Devem ser incluídas na documentação todas as fases do processo e disponibilizados na forma de documentação pública e disponível para pesquisadores. Recomendável publicação de todos os trabalhos de forma a democratizar o acesso ao material.
Sobre a importância da documentação, da preservação e registro de todos os processos de restauração, escavação e sua consequente disponibilização pública, a carta aponta para importância da democratização do conhecimento, onde todos os pesquisadores da área e profissionais correlatos possam munir-se de material documental para fomentar a produção científica como forma de ampliar o conhecimento. O livre acesso à informação é uma das mais importantes formas de democracia.
*Continua no próximo post...
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