A RESIDÊNCIA DO SENHOR CUNHA, DAS ROUPAS FEITAS.
- Analu Cadore
- 31 de out. de 2023
- 10 min de leitura
Um pouco da história do edifício do Antigo Banestado em Curitiba PR
No conjunto da Rua VX de Novembro em Curitiba, em meio aos casarões das mais variadas características arquitetônicas, cores e estilos – vai do clássico ao moderno – tem um edifício em específico que se destaca na multidão... o contraste dos ladrilhos amarelos portugueses com as pesadas pedras fazem do edifício conhecido como Antigo Banestado um marco peculiar na paisagem.
Também conhecido como “o prédio gótico da rua XV” apesar de uma leitura estética errônea, denota uma característica que se refere muito mais à história e ao contexto do que, de fato, a existência deste estilo em sua composição.

Neste texto vou usar como ponto de partida um pouco do material da minha pesquisa sobre a produção arquitetônica de Ernesto Guaita em Curitiba (UFSC 2010) tratando especificamente deste edifício e vou incluir algumas informações e análises novas.
Para poder entender bem o edifício, seu contexto e história, primeiro precisamos esclarecer alguns pontos a respeito do estilo eclético e o contexto histórico da época no Brasil. O ecletismo consolidou-se no país por permitir a adoção de diversos elementos de estilos diferentes em uma mesma composição, não só em edifícios oficiais e residências da classe mais abastada, mas em diversas outras classes sociais.
O pesquisador Gustavo Rocha-Peixoto traz o conceito de “arquitetura falante”, ou seja, a composição, os traços e elementos compositivos faziam parte de um repertório para comunicar na fachada do edifício algo sobre seu proprietário. Poderia ser a classe social, origem, etc. fator que foi muito facilitado pela existência dos catálogos oriundos de países europeus que disponibilizavam à população a compra de diversos itens arquitetônicos e agora não só os prédios públicos ou de pessoas nobres poderiam ser ornamentados, mas também a casa de qualquer cidadão comum (que pudesse pagar, claro. A questão aqui é o acesso à estes ornamentos, não o preço).
O ecletismo é adotado em Curitiba como uma medida de refinamento para a arquitetura colonial existente. Gradativamente as construções em taipa eram demolidas para dar espaço às edificações em alvenaria. Com a nova arquitetura chegam também as novas técnicas e materiais construtivos, como o ferro, louças, telhas, etc.

História
No final do século XIX, o imigrante português Manoel da Costa Cunha encomendou ao italiano Ernesto Guaita o projeto para sua residência e comércio. A execução ficou a cargo do imigrante alemão e mestre em cantaria Henrique Henning, também conhecido por ter construído a Catedral de Curitiba.
Por muitos anos o edifício abrigou no pavimento térreo a loja de roupas de Cunha, conhecida como “o Cunha das roupas feitas”, e nos pavimentos superiores, a sua residência e de sua família. O edifício sempre teve muito destaque na cidade e foi o primeiro edifício de três pavimentos na Rua
XV de Novembro.
Foto de 1905
Fonte: Casada Memória
Autor Desconhecido

Foto de 1906
Fonte: Site Casa da Memória
Autor desconhecido
Foi sede de conturbados episódios da história política de Curitiba. Na época da revolução federalista Manoel Cunha foi obrigado a entregar grande parte do estoque de sua loja, o que acabou por deixá-lo com inúmeras dívidas e o obrigando mais tarde a colocar o edifício à venda, sendo então adquirido pelo ervateiro Manoel de Macedo.
Anos mais tarde, seus herdeiros o venderam para o Governo do Estado, para servir como a Sede do Banco do Estado do Paraná (Banestado) título que ainda ostenta na serralheria das aberturas ogivais do térreo. Mais tarde, sediou por muitos anos a agência de rendas da Secretaria de Estado da Fazenda. Em 1973 o edifício volta a ser sede do Banco do Estado desempenha até hoje o papel de agência bancária.

Foto de 2010
Fonte: Acervo pessoal
Informações Gerais
Localização: Rua XV de Novembro, n. 332, esquina com Rua Monsenhor Celso
Data de construção: 1893
Autor do projeto: Ernesto Guaita
Uso: Misto – comércio e residência (original)
Institucional – Banco Itaú (atual)
Tombamento Estadual Processo no 45/ 74, Inscrição no 05-I de 11/03/1974 – Paisagem Urbana do trecho da Praça Osório, Avenida Luiz Xavier, Rua XV de Novembro e Praça Santos Andrade.
Proprietário: Particular
Referências: Prédio gótico da Rua XV
Antigo Banestado
Cronologia
1893: construção
1973: Sede Banestado
2000 - atualmente: Sede Banco Itaú
Entorno
O edifício está localizado na região central de Curitiba, na Rua XV de Novembro, esquina com a Rua Monsenhor Celso. Esta região é marcada pela existência de vários edifícios e espaços públicos importantes para a cidade.

Esquema de implantação no lote
Mapa base: Google (2010) / com intervenção gráfica de Analu Cadore (2010)
A rua XV de Novembro e seu casario possuem os primeiros edifícios em altura da cidade, na vizinhança ainda temos a Praça Generoso Marques onde antes existia o Mercado Público e onde posteriormente foi construído o edifício do Paço da Liberdade, antiga sede do governo local. Na Praça Tiradentes, local do Marco Zero da cidade, encontra-se a Catedral de Curitiba, edifício importante para analisarmos esta obra de Guaita.

Catedral de Curitiba Nossa Senhora da Luz dos Pinhais - 2010 Fonte: Acervo da autora
A relação entre este edifício e a Catedral é realmente curiosa. Ambos foram concebidos na mesma época, na década de 1890, e estão posicionados com uma proximidade que estando diante de cada um deles, o outro é visível. A história nos conta que Guaita elaborou um projeto para a nova Catedral, mas que não foi aceito. Henrique Henning, um imigrante alemão especialista no trabalho em cantaria (pedras) foi mestre de obras da obra da Catedral e teve um desentendimento com o padre na época, inclusive no dia da inauguração um parente de Henning, condoído com o ocorrido, quebrou a placa de mármore como sinal de revolta – placa essa que ainda está na entrada da Catedral... quebrada.

Após o dessabores com a obra da Catedral, Guaita convidou Henning para trabalhar com ele na obra da casa do Senhor Cunha. Talvez a cantaria rustica que traz referência ao gótico do pavimento térreo seja um “manifesto silencioso” dos dois em vista ao ocorrido na Catedral, uma vez que, até onde se tem registro, este tipo de elemento não foi empregado por Guaita em nenhum de seus outros projetos de arquitetura, onde lançava mão mais frequentemente do repertório clássico, influenciado pela arquitetura de Andrea Palladio, a quem tinha como referência [1].
Por se tratar de um edifício de esquina, sua volumetria retangular proporciona destaque na paisagem tanto da Rua XV de Novembro quanto da Rua Monsenhor Celso. Originalmente o edifício possuía planta retangular e possui uma ordem e ritmo na fachada muito peculiar ao modo de projetar de Guaita.
Esquema mostrando a posição do edifício em relação ao entorno e à Catedral
Fonte: Autora 2010.
O "puxadinho"
Mais tarde, provavelmente na época já em que funcionava como agência bancária, o edifício recebeu uma ampliação no sentido da Rua Monsenhor Celso, porém em 2 pavimentos, que existe até hoje. Esta ampliação tenta imitar a fachada original não utilizando porém o mesmo material e nível de detalhamento – o que era a abordagem que se usava para estes casos na época em que provavelmente foi realizado.

As adaptações podem até confundir o observador pouco atento, fazendo com que a real percepção do edifício seja deturpada, mas uma olhada mais cuidadosa faz notar suas diferenças. Esta alteração ocasiona uma dificuldade na percepção do partido original, do ritmo das aberturas e da proporção da composição.
Destaque para a ampliação do edifício
Fonte: Acervo da autora
Dentro do campo da conservação e da preservação do patrimônio histórico, ao observar hoje esta porção do edifício que suscita estranhamento ao observador (pelos motivos citados acima das diferenças de material, etc.) deve-se buscar entender a história para compreender a composição atual do edifício, por isso que esta leitura que proponho é tão importante para a compreensão da arquitetura e de como intervir na preexistência.
Originalmente o edifício possuía sua conformação em planta retangular no volume único de três pavimentos, fato que pode ser facilmente confirmado através das fotos antigas e, além destas, através da análise da arquitetura. A composição da fachada, ornamentos, revestimento e ritmo das aberturas nos comprova isto, que também vai de encontro ao modo de projetar de Ernesto Guaita. Com o uso e a necessidade de ampliação, a segunda porção foi realizada tentando "imitar" o edifício original que, como dito anteriormente, era o modo de proceder da época.

Como não é possível precisar a data desta ampliação, vamos nos ater a análise do estado de fato e não à juízo de valor, se o procedimento foi correto ou não. Segundo as Cartas de Restauro e as teorias que orientam o proceder em casos de intervenção no patrimônio cultural, qualquer adição, ampliação ou intervenção no bem deve ser reversível (mas existem casos onde isso não é possível mas isso é discussão para outro momento) e claramente distinguível, seja na escolha dos materiais, cores e volumetria.
Imagem da porção onde o corpo do edifício e a ampliação se encontram (2010)
Fonte: Acervo da autora
Neste caso, a volumetria foi respeitada e no que tange à distinguibilidade, ela vêm de encontro com a questão dos materiais (pintura no lugar do ladrilho, cimento no lugar da pedra no térreo etc.) mas a opção de manter uma mimese, mesmo com os elementos apenas citados, causa uma leitura equivocada da obra - uma vez que muitos acreditam que esta ampliação seja original - e prejudica a leitura do edifício tanto nas questões de estilo, história e volumetria, quanto na questão da autoria uma vez que Guaita, conhecedor da boa arquitetura renascentista italiana, provavelmente não adotaria este tipo de solução.

Outro elemento importante que auxilia a leitura é o gradil de ferro do pavimento térreo, que acentua as características góticas do edifício. Ela possui vários elementos da arquitetura gótica como os arcos ogivais e as aberturas em trifólios e quadrifólios (elementos estes que também se encontram no formato dos vitrais da Catedral) acentuando mais uma vez a relação entre as duas construções. Mas este elemento não é original, fato que pode ser comprovado através de imagens antigas e pelas letras BEP (Banco do Estado do Paraná) na porção central do gradil.
Detalhe para a sigla BEP no gradil
Fonte: Acervo da autora 2010
Análise da composição da fachada
Fachadas XV de Novembro e Monsenhor Celso
Aqui eu trago uma análise mais técnica da composição da fachada deste edifício. É muito importante sabermos ler a fachada para que possamos entender a mensagem que ele quer comunicar, já que no ecletismo a arquitetura fala. Os elementos citados na análise estão marcados na imagem através de letras.

Fachada da Rua XV de Novembro com correspondências de leitura
Desenho base: Arquibrasil (2004) / com intervenção gráfica de Analu Cadore (2010)

Fachada Rua Monsenhor Celso com as correspondências para leitura
Desenho base: Arquibrasil (2003) / com intervenção gráfica de Analu Cadore (2010)
As fachadas são compostas por um corpo central dividido em três pavimentos (a) e coroamento (b).
Como o edifício está construído no alinhamento da rua, não possui nenhuma elevação ou embasamento na fachada voltada para a Rua XV de Novembro. Na fachada da Rua Monsenhor Celso, devido à inclinação da rua, conforme o nível em relação ao pavimento térreo decresce em declive forma um pequeno porão perceptível pelas gateiras sob as quatro últimas janelas do térreo (c).
O pavimento térreo possui um revestimento em cantaria de pedra, (d) com as aberturas das portas e janelas em arco ogival (e), trazendo à composição um ar neogótico. Ainda no térreo, as aberturas são mais altas, dando a falsa impressão de que o pé direito do térreo é maior que dos outros pavimentos.

Os pavimentos superiores são revestidos por um ladrilho retangular de cor amarela (f), importados de Portugal. Cada abertura de janela possui um balcão em ferro forjado (g) e esquadrias de madeira (h).
O coroamento consiste em uma platibanda fechada (i), dividida em sua metade por uma cimalha que se projeta avançando o limite do plano da fachada (j). Na sua porção inferior, o coroamento é ornado por ornamentos de motivos navais (k).
Detalhe do arremate do edifício
Foto: Acervo da autora 2010
Na linha da divisão dos pavimentos e das vergas das janelas, uma cimalha sutil forma uma linha longitudinal pela fachada (l), criando linhas horizontais que transmitem certa linearidade à composição, em contraponto com os traços longilíneos das janelas em arcos ogivais.
Plantas
O estudo do partido compositivo das plantas do edifício do senhor Manoel Cunha não foi possível por não ter persistido ainda hoje nenhum levantamento ou resquício da composição interna dos espaços. Segundo informações colhidas na Secretaria de Estado da Cultura (SEEC), que é responsável por seu tombamento, como o edifício sempre foi de propriedade privada, nunca teve sua planta levantada, já que na ocasião do tombamento o edifício já tinha seu partido profundamente alterado e o tombamento do qual faz parte concerne apenas às suas fachadas.
Considerações
A Residência e Comércio Cunha é a edificação mais peculiar dentre os projetos de Ernesto Guaita em Curitiba. O motivo é sua composição eclética com influências neogóticas e de vocabulário neo-manuelino[2], bastante comuns no ecletismo português. As razões para a adoção destes não são concretas, mas é possível supor que a influência neo-manuelina seria por conta de o proprietário do imóvel ser um comerciante português bastante próspero, e os traços de influência gótica seriam influenciados pelo entorno: a Catedral de Curitiba[3] foi construída na mesma época que o edifício, tendo as duas obras o mesmo mestre cantareiro – o imigrante alemão Henrique Henning.
Sua implantação segue o modelo dos demais edifícios da rua: construído no alinhamento predial e nos limites do lote. O fato de ser uma construção de esquina e possuir uma composição tão particular confere a esta edificação um destaque singular. Poucos edifícios do mesmo período na cidade possuem a mesma influência estilística, já que o gótico era mais costumeiramente utilizado na composição de igrejas.
A antiga residência do senhor Cunha, das roupas feitas, é ainda hoje um dos edifícios mais emblemáticos da cidade, marcando uma das principais esquinas do centro, impondo-se na paisagem da rua XV de Novembro e espreitando, de canto, a imponente Catedral. Muita história foi testemunhada por seus ladrilhos amarelos e cabe a nós, através de análises técnicas, históricas e artísticas, desvendar seus segredos.
Conhecer a história da cidade, contada através de seus edifícios, ruas e praças é conhecer um pouco mais de nós mesmos. Que tal fazer este exercício: tentar olhar com um olho mais apurado o espaço que te cerca? Você pode se surpreender...
Para o texto completo acesse: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/94352
Referências:
ARQUIBRASIL Arquitetura e restauro. Rua das Flores em Perspectiva: Levantamento e diagnóstico. Curitiba PR. 2006
CADORE, Analu. A produção arquitetônica de Ernesto Guaita em Curitiba. Dissertação de mestrado. UFSC 2010.
PEIXOTO-ROCHA, Gustavo. Reflexo das Luzes na Terra do Sol: Sobre a Teoria de Arquitetura no Brasil da Independência. Pró-Livros Editora. São Paulo SP. 2000
_____________. Guia da Arquitetura Eclética do Rio de Janeiro (Introdução). Editora Casa da Palavra. Rio de Janeiro RJ. 2001.
SUTIL, Marcelo. O Espelho e a Miragem: Ecletismo, Moradia e Modernidade na Curitiba do Início do século XX. Travessa dos Editores. Curitiba 2009.
[1] A referência a Andrea Palladio na influência da arquitetura de Guaita pode ser comprovada através do relato de João de Mio, que trabalhou muito com Guaita, em sua carta publicada, onde diz que ele sempre lhe dizia para estudar e conhecer os ensinamentos e tratados de Leon Battista Alberti e Palladio como referência de boa arquitetura.
[2] O estilo neo-manuelino foi uma corrente revivalista que se desenvolveu dentro da arquitetura e das artes decorativas portuguesas entre meados do século XIX e o início do século XX. [3] Catedral Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba - 1893